segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

ENSAIO
Líricas da Manguetown: de CSNZ a Candéas
Por Sandro Ornellas


Nos anos 90´s, Recife se tornou a capital brasileira da cultura de invenção. Sem a mesma multiplicidade caos-cosmopolitana de São Paulo, sem a mesma malandragem esquema bossa-nóia do Rio de Janeiro, sem a mesma distante estrangeiridade de Porto Alegre, sem a mesma tropicalidade de balneário afro-mercadológico de Salvador, Recife nos 90´s conseguiu articular como poucas vezes se viu nos anos pós-ditadura militar mentes inquietas, corpos insubmissos e gestos criativos em uma mesma tacada: o Manguebit, ou Manguebeat, ou, ainda, Mangue Beat. Essa tacada é amplamente estudada em um livro lançado no final do ano passado – fruto de uma inspiradora dissertação de mestrado em Letras na Universidade Federal da Bahia – escrito por José Henrique de Freitas Santos e intitulada provocativamente AFROPLAGIOCOMBINADORSCIBERDÉLICOS: afrociberdelia e plagiocombinação nas letras de Chico Science & Nação Zumbi (Salvador, Quarteto Editora, quarteto.livro@compos.com.br). Como o autor faz questão de sempre repetir, Afrociberdelia é um conceito retirado dos próprios discos de Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), enquanto Plagiocombinação é apropriado do disco de Tom Zé, Com defeito de fabricação. Ou seja, ao invés de retirar seus conceitos-base de fontes teórico-críticas, José Henrique os formula a partir de músicos-pensadores, com suas músicas feitas para o corpo pensar. Não que, entretanto, haja um desprezo pelo pensamento teórico-crítico no livro, mas o autor sabiamente o funde às idéias cantadas por esses e outros ricos músicos- pensadores.O livro opta por uma interpretação da “Cena Mangue” pelo crivo de uma cultura pop(ular) negra transnacional, o que para o autor é legitimado pelo conceito de Afrocoberdelia, presente já no primeiro disco de Chico Science & Nação Zumbi e título do segundo disco, último com a presença de Chico. Aliás, o prefixo afro é explorado em todas as suas potencialidades pelo jovem autor, indo desde a interpretação do samba, do coco, do maracatu e de outros ritmos negro-populares do Brasil como originalmente impuros e transnacionais – pois forjados no que o autor chama, tomando a expressão do sociólogo inglês Paul Gilroy, “Atlântico Negro” – até a impressionante e abusada tese da origem africana da cibernética, idéia tomada a Ron Eglash. Fazendo um mapeamento das referências presente nas fusões musicais, nas letras, em entrevistas e atitudes dos seus principais formuladores de discursos, o livro não se detém apenas na referencialização, mas arrisca interpretações, desmontagens, paráfrases, comentários e fragmentos sobre Josué de Castro, Antonio Conselheiro, Zumbi, Lampião, Zapata, Panteras Negras, bem como também não se faz de rogado em discutir a apropriação da “Cena Mangue” de outras linguagens, como quadrinhos, moda e tecnologias várias, a low tech (nas pick ups dos DJ´s) e a high tech (no atual pólo de tecnologia – Porto Digital – no Recife antigo, bem como a Rede Virtual Comunitária). Aliás, é sempre repetida a imagem-símbolo do Manguebit de “uma antena parabólica fincada na lama”, nos momentos em que é preciso ao autor sintetizar discursivamente as fronteiras (tradicionalmente distantes e nada usuais) com as quais lida a cena recifense. “Cena”, e não “movimento”, frisa José Henrique, para guardar a pluralidade de manifestações e linguagens pelas quais os músicos, jornalistas, cineastas, escritores, artistas gráficos, ONG´s e outros se expressam e intervém, bem como a pluralidade de pensamentos e de interesses dos seus participantes; “cena”, sempre pontual e fragmentária, em contraposição a “movimento”, com líder, manifesto e linearidade hierárquica de pensamento. Essa diferença é demonstrada no livro quando é exposto o corte que os mangueboys produzem com relação ao Movimento Armorial dos anos 70´s, ao mesmo tempo em que reinventam as nações de maracatu para os jovens das comunidades populares, assim como para os jovens da classe média pernambucana; ambos passaram a se orgulhar de pertencer a uma determinada nação.Hoje, por outro lado, com a Nação Zumbi e outros artistas – Mundo Livre S/A, Otto, Mestre Ambrósio, Cordel do Fogo Encantado, etc. – mostrando serem capazes de se reinventar e dar continuidade aos seus projetos, com a Manguetown, Recife, produzindo cinema de ótima qualidade – vide o excelente Amarelo Manga – e projetos sociais com força local e inspiração internacional, me cai às mãos um rebento que parece apontar para permanência dessas propostas na próxima geração. Falo do livro do jovem paraibano, morador de Recife, Bruno Candéas, intitulado sintomaticamente FÉRIAS DO GUETO (Recife, Edição do autor, brunocandeas@bol.com.br). Sintoma precisamente do tipo de discurso que Recife começou a disseminar nos anos 90´s pelo Brasil, um discurso ambíguo entre o inocente e o irônico, político-lúdico, uma brincadeira levada a sério, como Chico dizia de sua música, e que faz parte das melhores tradições musicais e literárias do Brasil. “Férias”, como temporada sem obrigações profissionais demandadas pela sobrevivência cotidiana, implica que o “gueto” é o (ganha-)pão, a casa, o corpo do próprio poeta, seu território necessário, extensão obrigatória da sua vida. O poeta, no entanto, arrisca outros horizontes, outras modulações poéticas, outros vôos da vida, tirando irônicas férias da labuta diária, que, segundo Tanussi Cardoso, na apresentação ao livro, marca seus livros anteriores:as mil flores as mil velas tarifaselásticasvem dos Açores vem de Bruxelascomo as clássicasmatemáticase seus favores e suas querelas (“Euro-pêia”)Por outro lado há urgência em seus textos, o que às vezes leva o poeta a esquecer (mesmo?) pequenas pedras no seu caldo poético – como afirma e elogia João Cabral em um poema-poética –, e sendo seu terceiro livro individual, ainda tão jovem, vejo nessa urgência muito da vontade de intervenção poética no mundo. Essa intervenção pode-deve ser de modo absolutamente pessoal, sem, no entanto, perder a capacidade de comunicar, como no (auto-)irônico “Candéismo”, abertura bastante representativa para o livro: “Meu sobrenome / agora nome: / Candéismo. / Escola / sem vagas / sem logradouro / sem manifesto / ou estardalhaço. / Tendência falada. / Amada / ou odiada. / Desdobrada. / Afoita / feito flato. / Inflamável.” Urgência e intervenção que não perdem de vista uma vontade de experimentar com as palavras, com as grafias, com a espacialização do texto na página desse livro, mesmo que esses procedimentos, todos (ab)usados por Candéas, sejam ao mesmo tempo, e novamente, ironizados por ele – e por isso ‘abusados’. Assim, afirmo ler a ironia como a figura que atravessa verticalmente toda a extensão do livro. O re-nomear o mundo do “candéismo” é sempre limitado pelo seu vetor contrário: o clichê, que é nome (e mundo) esvaziado de sentido: “As palavras ficam caidinhas / por poetas experimentalistas / (...)” (“Férias do gueto”). No entanto, pela urgência, a própria ironia é questionada violentamente em “Raza odiada”: “Quando a natureza / é sinistra / ironiza-se as desgraças // não nos contentamos / em ironizar / o irônico // ironizamos / onde dói / noutro peito // seres como nós / devem viver isolados.” É assim que Bruno Candéas constrói seu universo poético, atento ao próprio homem que há em si, para que possa melhor ouvir (entender) o outro homem (que também há em si). Este texto é uma homenagem pelos dez anos da morte de Chico Science.

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